sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Espelho, espelho meu



Parar na frente do espelho e se analisar. Escolher algum detalhe de sua aparência como foco de sua atenção. Rejeitá-lo. Querer ser diferente.
Já fiz esse exercício tantas vezes, que nem me lembro mais. E a prática leva a perfeição.
Só que hoje sei que as sardas que tenho vêm da minha mãe. E com elas, carrego minha mãe comigo, aonde for.
Hoje também sei que esses círculos escuros em volta dos meus olhos, trago da minha avó. E se pensar bem, se parecem com uma maquiagem natural, moldura pros olhos negros, que compartilho com minha irmã.
Sei que, se sou magrelo, meu pai também era na minha idade. E o bigode, que cismou começar a nascer quando eu tinha 12 anos também é dele...
E a cicatriz que tenho no nariz veio das férias, que passei com minha família em Caldas Novas.
Da minha outra vó vem o prazer de ficar acordado, até mais tarde, aproveitando os momentos de solidão que só a madrugada traz. E que desfruto enquanto escrevo estas linhas.
São todos "defeitos" que me definem. Que me conectam com a constelação dos meus. Que me fazem eu.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Para e olha o céu




Já teve uma ideia e a perdeu? Fica na ponta da língua, para saltar, mas hesita. Talvez tenha medo da queda. 

Com certeza já ouviu falar da história da árvore. A árvore que cai em uma floresta sem nenhuma testemunha. Houve barulho? Isso me tira o sono.

Se dois amantes estão juntos na cama, antes de dormir e conversam. Se um dorme antes do outro, isso não provoca tristeza. Em breve o outro também dormirá.

A música ainda não composta. Não se sente falta dela. Uma vez composta, existe e pronto. Quando executada ou quando se cala a orquestra sua existência não cessa. Até chegar o dia em que não haverá quem se recorde de suas notas. Não haverá mais registro. E aí também não se sentirá sua falta.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Rotina





Brasília, 23 de maio de 2015.

7h00. Tocou o alarme. Abriu os olhos, mas virou pro lado.
7h37. Tomou seu café da manhã. Não gostava de frutas, por isso tomou café preto sem açúcar e comeu um pão de queijo de ontem.
8h19. Ponto de ônibus.
8h50. Pegou a bicicleta na rodoviária, pra ir até o Ministério da Justiça e bater o ponto às 9h02.
9h08. Ligou seu computador e foi até a copa buscar café.
9h17. Leu os e-mails e às 9h32 cumprimentou sua colega de sala, de Ribeirão Preto, moradora da Asa Norte que se sentava na mesa da frente. Nos próximos 20 minutos chegaram todos e falaram do fim de semana e emendaram a conversa para assuntos de trabalho. Reuniões, análises, briefings, tabelas comparativas, votações.
9h49. Se dirigiu para a reunião geral.
De 9h53 até 12h48 todos estavam sentados na sala do Secretário, negro, de dreads no cabelo e gravata com correntes desenhadas, falando de todas as comissões, de todas as votações, de todos os posicionamentos e direções para base.
10h28. Falaram sobre a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Assunto, PEC da redução da maioridade penal. Posicionamento contrário.
10h43. Falaram sobre Comissão de Meio Ambiente. PEC sobre alterações na demarcação de terras indígenas. Posicionamento contrário.
10h58. Uso de nome social.
11h13. Licença paternidade.
11h19. Primeira mensagem no grupo do Whatsapp sobre o local do almoço.
11h27 Regulação de trânsito.
11h32 Whatsapp: Opções de restaurante: Chico? Kranfo? Menino Esquecido?
11h45. Lei de Antenas.
12h39. Whatsapp: foooome.
12h48. O grupo saiu da sala e foi para as escadas, depois para a frente do Ministério. Discussão de 3 minutos até que se decidiu ir ao restaurante do MJ mesmo, já que todos tínhamos coisas urgentes para fazer.
12h59. Fila.
13h02. Decidiu entre feijão preto ou purê de batatas.
13h03. Decidiu entre fruta ou musse de chocolate.
13h04. Fila.
13h08. Falaram sobre reforma política.
13h14. Falaram sobre Wesley Safadão.
13h21. Começou a comer o musse de chocolate.
13h24. Falaram sobre Game of Thrones.
13h30. Desistiu de tentar terminar o musse. Estava muito doce.
13h32. Fila.
13h37. Conversou por 7 minutos, com os colegas de trabalho, tomando banho de sol.
13h39. A colega, coordenadora da equipe, alta, cabelos lisos e pretos e olhos puxados, apesar de não ser japonesa, se despediu por que teria reunião no Planejamento aquela tarde.
13h49. Tomou cafezinho em sua mesa.
13h59. Organizou a ordem dos briefings que deveria produzir até quarta-feira: lei de antenas, reestruturação da Polícia Rodoviária Federal e discriminação de dados na cobrança de companhias telefônicas.
14h49. Enviou e-mail à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), questionando seu posicionamento.
14h53. Alimentou o processo SEI e o sistema Trello.
15h12. Checou o facebook.
15h22. Começou o briefing.
16h07. Seu coordenador, paulista, barbudo, falador, tirou uma gravata da gaveta e falou "vem comigo pro Ministério do Planejamento. Traz o Briefing sobre o gatilho da Polícia Rodoviária Federal".
16h09. Pegou os papeis na impressora e correu atrás do chefe.
16h29. Sentou à mesa de reunião com o Secretário de dreads, a representante do sindicato da PRF, loira que vestia terninho azul, e alguns inspetores e burocratas de alguns ministérios.
17h32. O celta cinza do MJ deixou ele e seu colega paulistano, que já tirara a gravata, na frente do Ministério.
17h35. Decidiram comer tapioca no carrinho do estacionamento do MJ.
17h37. Mandaram Whatsapp pro grupo.
17h48. Desceram a equipe de civil: outro paulistano barbudo que gostava de cantar trovinha da San Fran, o mineiro de São Paulo, bem casado com outro rapaz, este mineiro de verdade, e a colega de Ribeirão Preto.
De 18h12 até 18h27 tomaram refrigerante, comeram tapioca e pastel, conversaram sobre Redução da Maioridade Penal e reclamaram da incompetência dentro do próprio Governo.
18h34. Pegaram uma tapioca de presunto e queijo para o colega de cabelos meio grandes, que trabalhava na pauta da Redução e não parava na mesa um só segundo.
18h41. Começou o terceiro turno, trabalhando no briefing de antenas.
18h49. Checou o Whatsapp.
18h52. Checou o Facebook.
18h55. Chegou o Grindr.
19h02. Levantou os olhos da tela do computador e olhou para fora, na janela.
19h03 Escutou a voz da representante da República de Ribeirão Preto.
- O que foi, Gusta? Cansou?
- Não, não, só estou imaginando.
- Imaginando o que?
- Esse prédio.
- Ele é lindo, né?
19h04. Ela olhou para as colunas de concreto aparente.
- Demais. Mas não é isso. Você já imaginou, sei lá... Como era um dia de trabalho aqui em 1969, 1970? Esses andares desse prédio, eles já tiveram outras salas. Com outras pessoas dentro, que acordavam, vestiam ternos, entravam aqui, faziam reuniões. Usavam fichas, canetas, máquinas de escrever, mimeógrafos.
- Verdade, né? Todo mundo devia ter um cinzeiro na mesa. Fumar na sala, durante as reuniões.
- Só homens, brancos.
- Muito louco isso, né?
19h06. A colega (de olhos puxados, apesar de não ser japonesa) falou.
- Dizem que tem a sala na garagem, onde faziam tortura.
- Sério?
- O Seu Humberto, do arquivo, que sabe de tudo. Pergunta pra ele.
19h07 todos em silêncio por uns instantes.
- Gusta, me ajuda aqui com os briefings de Reforma Política. Vamos salvar a República, haha!
De 19h07 até 19h52 analisou o sistema político brasileiro e as propostas de PECs e Leis que buscavam alterá-lo.
19h57. Bateu o ponto.
20h03. Pegou a bicicleta para ir para a rodoviária.
20h44. Chegou em casa e deu um beijo na mãe.
20h49. Sentou-se na sala de casa, vendo o pai assistir ao Jornal Nacional.
20h52. Foi para o quarto, ligou o notebook e entrou no Facebook.
21h42. Whatsapp: as pessoas informaram que iriam jantar juntas.
22h14. Começou a ver House of Cards no Netflix.
22h23. Pausou o seriado e trocou para Friends.
23h42. Adormeceu.