Hoje o dia está frio. Foi uma dificuldade pra sair da cama, mas
consegui. Agora estou sozinho na cozinha, aproveitando a solidão matinal. Acabo
de passar um café fresquinho. Seu cheiro forte inunda a cozinha e me ajuda a
acordar pra mais um dia. Sabe, é essa minha parte preferida do café: seu
cheiro. É que, segurando a caneca de café preto e sentindo seu calor em minhas
mãos, seu cheiro me inunda. Cheiro da cozinha lá de casa, no Brasil distante. Cheiro
da pausa pro cafezinho do trabalho. Cheiro de “só mais 5 minutinhos, mãe, que
eu já eu levanto pra ir pra escola”.
Antes do primeiro gole, olho dentro da caneca e me
deparo com minha segunda parte preferida do café: sua cor. Correndo o risco de
me tornar ridículo, vou compartilhar com vocês um segredo: o negro do café me
fascina. Longe de ser o negro artificial de uma Coca-Cola, com suas bolhas
agitadiças, o café não. O café fica quieto, deixando uma pequena névoa se desprender de sua superfície, me aguardando. Miro
para o misterioso círculo negro dentro de minha caneca, mas ele não se
intimida. Me olha de volta no fundo dos olhos, como que me desafiando: você vai
encarar o desconhecido? Você vai enfrentar mais um dia, com todos seus
desafios? Tento protestar, mar ele não fala mais nada. Apenas permanece me
encarando. Como geralmente acontece nesses pequenos duelos de olhares, sempre
ha um vencedor e um perdedor. E eu me dou por vencido, desviando meu olhar. Fecho
os olhos pra aguçar meu olfato, mas então, ao invés de desaparecer, a negritude
se agiganta, saindo dos limites da caneca e tornando-se a imensidão dos olhos
fechados. Fora de mim já existe a manhã, mas o café me acorda pra lembrar que a
noite voltará.
Enquanto estou de olhos fechados, o cheiro e a
negritude brincam com meus sentidos, me levando pra visitar lugares
inesperados. O cheiro me puxa pras lembranças diversas. Cores conhecidas,
familiares e agradáveis. Mas a negritude me mostra cores nunca antes vistas. De
um futuro desconhecido. De um futuro que me deixa maravilhado com sua dureza e
beleza. Cores escondidas no desconhecido do negro. Uma jornada que dura apenas
um instante, pois abro os olhos e estou de volta em minha cozinha, com sua
janela cinza. Do lado de fora um corvo canta triste no céu de Berlim.
E o céu melancólico de Berlim me lembra da minha
terceira parte preferida do meu café: seu gosto amargo. Deixei de tomar café adoçado
faz um tempo já e confesso que não sinto falta mais. Coisa da idade. Com o
tempo aprendi que o doce pode ser muito doce. Que não podemos ter céu azul
todos os dias. Que não pode existir uma vida de alegrias apenas. Mas também
aprendi que está tudo bem. Que o que percebemos como indesejável também traz
sua beleza. Que o azedo e o amargo possuem um espaço muito importante em nossos
dias. E que seria insuportável conhecer apenas o doce e salgado de tão óbvios
que são.
E assim, tomo meu primeiro gole do dia, recebendo esse
liquido negro e amargo, que vem carregado de memórias, medos e misteriosas
possibilidade.
Bom dia.