Mostrando postagens com marcador Berlin Chronicle. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Berlin Chronicle. Mostrar todas as postagens

sábado, 14 de junho de 2014

Os Alquimistas





- To sem abridor de garrafas. Abre a cerveja pra mim?
- Mas é claro! Dois anos aqui me ensinaram pelo menos isso!
Ele pegou a garrafa da mão dela e a abriu usando a sua.
- Aqui. Agora só preciso achar um cantinho pra abrir a minha cerveja... - ele disse, enquanto procurava por qualquer beirada de um muro ou cerca onde pudesse fazer a mágica.
- Pronto, acho que aqui eu consigo...
E ele tentou uma, duas, três vezes até que que a tampa da garrafa finalmente caiu em algum lugar do jardim perto da cerca.
- Vem cá, amigo. Senta. Eu quero aproveitar sua companhia. A gente não tem muito tempo... Prost!
- Prost! - ele respondeu, olhando em seus olhos.
Ele se sentou do lado dela, nos degraus da escada da Casa de Consertos. Eles estavam em Gendarmenmarkt, Berlim. O vento estava frio e o sol já tinha ido embora, apesar de ser só 5 da tarde.
- Nossa, nem acredito que esses dois anos passaram tão rápido! Já é quase Março e logo a gente já vai ter terminado tudo! Todo mundo vai embora de volta pros seus países ou então pra outros lugares... Berlim vai ficar bem vazia - ela disse.
- Não é? O tempo tá passando muito rápido! Eu não me lembro de ser assim quando a gene era criança!
- Pois é! Eu me lembro que demorava pra sempre pra chegar o Natal ou a Páscoa... O meu Adventskalender demorava uma eternidade pra passar!
- Hahaha! Adventskalender... Outra coisa boa que aprendi aqui na Alemanha. Ah, e obrigado por ter me dado um ano passado.
- De nada - ela disse, com um sorriso nos lábios.
Eles tomaram um gole de cerveja.
- E aí? Como foi? Quer falar sobre isso? - ele perguntou.
- Hum... Claro, claro.
- Ok. Sou um ótimo ouvinte - disse, enquanto tomava outro gole de cerveja.
- Então... Ele queria conversar. Queria se explicar, falar de nós dois, falar do nosso futuro...
- Uhum...
- Ele começou me dizendo o quanto me amava e quanto ele queria estar comigo. Me disse que estava arrependido e que ia mudar. Que tudo que eu tinha conversado com ele no passado... Ele finalmente tinha entendido e ia tentar mudar. Que era só eu falar pra ele o que fazer, que ele faria.
- E você?
- Eu.. Eu só escutei. Foi bem difícil, sabe? Eu olhava pra ele... Não é que eu o odeie ou algo assim. Eu ainda gosto dele e quero que ele seja feliz. Não to magoada. Mas o amor que eu sentia... Acabou. Eu disse isso pra ele, mas foi muito difícil. Ele chorou. Eu chorei - ela disse, com lágrimas nos olhos.
- E como você tá se sentindo agora?
- Péssima! Tem essa coisa aqui - ela apontou pro seu coração - que não tá certa. Eu... Eu sinto como se eu estivesse fazendo algo de errado com ele, apesar de saber que não estou - ela começou a chorar - É muito pesado.
- Oh, querida, vem cá, chora não - e ele a trouxe pra perto, abraçando-a - Eu acho que posso te ajudar.
Ele se levantou e estendeu a mão esquerda em sua direção - Vamos? - ela aceitou o convite e se deixou ser levada na direção de um jardim lá perto. O vento estava gelado e ela soltou de sua mão pra proteger suas mão no bolso.
- Ei, aonde você está me levando?
Ele não respondeu. Eles chegaram no meio do jardim, próximo a uma árvore alta, em suas sombras.
- Hummm... Acho que aqui tá bom. Será que alguém consegue ver a gente aqui? - ele perguntou.
- Sei lá... Acho que sim. Mas só se prestarem muita atenção - ela disse, limpando uma lágrima que teimava em cair em sua bochecha - O que você vai me mostrar?
- Aqui, segura isso aqui - ele a entregou sua garrafa e abriu sua mochila.
- Eu to ficando curiosa... - ela disse, tentando parecer mais interessada.
- Rapidinho... Rapidinho... Segura isso pra mim? - disse, enquanto entregava a ela um pacote de biscoitos e uma garrafa vazia de coca-cola - Ai, eu carrego muita coisa comigo! Hahaha... Onde tá? Onde tá? Aqui! Achei! - ele comemorou enquanto tirava de sua mochila uma bolinha - Agora me devolve essa tranqueira toda.
Ele guardou tudo de volta na mochila e pegou sua cerveja de volta.
- Vamos lá, esse é o segredo. Tudo que você tem de fazer é mudar as coisas. Transformá-las. É você que dá o peso pras coisas. Nada é leve ou pesado por si mesmo - disse, enquanto jogava a bolinha pro alto, como se fosse uma bolinha de pingue pongue. Uma bolinha de pingue pongue cinza - se você aprender a controlar, você conseguirá transformar o peso das coisas.
- Ai, tá de brincadeira, né? Você sempre foi engraçadinho! - Ela disse enquanto se levantava e começava a andar de volta - Vamos! Você já me animou. Captei a mensagem. Mas vamos sair do escuro, vem!
- Ei, é verdade! Tá acreditando não? Então pega! - E ele jogou a bolinha a ela.
Ela fez um gesto automático pra pegar a bolinha de pingue pongue. Mas quando ela a alcançou, ela percebeu que a bolinha era muito pesada. Tão pesada que quase a fez perder seu equilíbrio e derrubar sua cerveja.
- Nossa! Do que é feito isso? - ela perguntou ao deixar a bolinha cair no chão - Isso é feito de chumbo?
- Acertou de primeira! Parabéns! Agora volta aqui pra mim. Senta aqui comigo.
Ela pegou a bola e caminhou em sua direção, com olhos incrédulos. Que tipo de brincadeira era aquela? Ela ainda se sentava quando ele começou a explicar.
- É assim que se faz... - ele colocou a bolinha entre eles, no chão - Que nem eu te disse, as vezes a gente não percebe, mas as coisas não são leves ou pesadas por si - ele tomou suas mãos e colocou a bolinha em uma delas - nós que enxergamos as coisas de uma maneira ou de outra e decidimos como elas existirão pra nós - então ele colocou uma de suas mão em cima da mão dela, englobando a bolinha, metade a mão dele, metade a mão dela - eu tenho certeza que você já se perguntou se o seu azul é o mesmo azul que o meu. Se talvez o que eu vejo como azul é o seu vermelho. Todo mundo pensa nessas coisas. Todos se perguntam essas coisas porque está dentro de nós. Temos esse potencial adormecido de criar nosso redor - ele pegou sua outra mão e a colocou no outro lado da bolinha - Quando somos crianças e vemos as coisas pela primeira vez, nós decidimos como elas vão ser pra nós. E se conseguimos decidir quando somos crianças, também conseguimos fazer o mesmo agora. A gente que decide! - ele apertou as mãos dela em volta da bolinha - A gente!
Ela segurava a bolinha e conseguia sentir seu peso.
- Fala sério... Ela continua pesada - ela disse, incrédula.
- Só tenta, vai. Volta... Volta pro seu passado, pra sua infância. Tenta decidir o quão pesado uma bolinha de chumbo realmente é. Só tenta. Acredita em mim.
Ela fechou seus olhos e tentou. Se lembrou de sua infância. De sua mãe a deixando na creche. Do fim de semana em que sua família acampou perto da praia. Ela se lembrou de segurar a mão de seu pai, enquanto andavam num domingo ensolarado... Estavam indo comprar sorvete. Ela conseguiu se lembrar perfeitamente de como gostou de sentir os raios solares em sua pele e especialmente como ela gostou do cheiro que sua pele tinha depois de tomar sol por alguns minutos. Ela se lembrou de vivenciar isso e de gostar pela primeira vez. E ao pensar nessa memória, ali, naquela noite fria de Berlim, ela começou a sentir o sol em sua pele. Ela conseguiu sentir a mão de seu pai em sua mão. Conseguia sentir a mesma segurança que só as crianças conseguem ter, quando estão abertas a tudo e a todos, abertas a provar qualquer coisa que aparecer pela frente. Ela sentiu tudo. Mesmo que apenas por alguns segundos, ela sentiu isso tudo. E então, desse jeito, a bolinha em suas mão se tornou leve, como se fosse uma bolinha de Ping-Pong.
Ela abriu seus olhos e viu seu amigo sorrindo de volta.
- E aí? Conseguiu? - Perguntou esperançoso.
- Sim! - ela disse triunfante - Consegui! - E ela jogou a bola de chumbo pro ar, como se fosse uma bolinha de Ping-Pong - Que máximo! E dá pra fazer com qualquer coisa? - Ela perguntou, enquanto brincava com seu brinquedinho novo.
- Ah, acho que sim... Quase tudo... - ele explicou - Eu acho que tudo pode ser transformado em sua versão light - ele disse rindo - Mas será que a gente quer isso? Assim, acho que tem coisas que precisam ser pesadas, né? Se não tudo flutuaria... - E soltou uma outra risada.
- Faz sentido, faz sentido.
- Mas o importante é você saber que você pode fazer isso... E aí você que decide quando.
Ela veio e o abraçou de um jeito estranho. Como eles estavam sentados no chão, eles quase rolaram e caíram. Ele foi pego de surpresa e derrubou sua garrafa no chão.
- Ei, ei, ei! Sem desperdiçar a cerveja! - disse, enquanto pegava a cerveja caída.
- Obrigada! Muito obrigada por essa conversa! - ela disse, e estendeu a mão, devolvendo a bolinha.
- Não precisa agradecer... E pode ficar com a bolinha. É um Geschenk.

Para Anne Marie. Minha amiga.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

The Alchemists






- I don't have a bottle opener. Could you open my beer?
- But of course! Two years here have taught me at least that!
He took her beer bottle and opened it using the top of his.
- Here you go. Now I just need to find a corner where I can open mine... - he said, while searching for any sharp corner of a wall or a fence where he could do it.
- This will do the trick...
And he tried once, twice, three times until the top of his bottle finally popped up and fell near the garden fence.
- Come here, sweetie. Sit. I wanna enjoy your company, since we don't have much time together - she told him - Prost!
- Prost! - he said, looking in her eyes.
He sat at the steps of the concert house next to her. They were in Gendarmenmarkt, Berlin. The wind was chill and the sun was almost gone, even thought it was only 5 pm.
- You know, I can't believe these two years have passed so fast. It is almost March and soon it will be all done. Everybody will go back to their countries or move to different ones. Berlin will feel empty - she said.
- I know! Time is going by so fast! I don't remember it being like this when I was young!
- Right? It took forever to get to Christmas or Easter... I remember my Adventskalender took forever to pass!
- Hahaha! Adventskalender... Another cool thing I will bring home from Berlin. Thanks for the one you gave me, by the way.
- You are welcome - she said, with a smile on her lips.
They both took a sip of their beers.
- How did it go? Do you want to talk about it?
- Well... Yes, yes.
- Ok. I'm all ears - he said and took another sip of beer.
- So... He wanted to talk to me. He wanted to explain himself, talk about us, talk about our future.
- Yes...
- He started telling me how much he loved me and how much he wanted to be with me. He told me he was gonna change. Everything I had told him in the past... He finally got it and he would try to change. He would do whatever I wanted.
- And you?
- I just... I just listened. It was hard you know? I looked at him and... It's not like I hate him or anything. I still care for him and want him to be very happy. But the love I had... It is over. I told him, but it was very hard. He cried. I cried - she said. Her eyes were getting watery
- And how do you feel now?
- I feel terrible. There is this thing here - she pointed at her heart - that just doesn't feel right. I... I feel like I am doing something bad to him. Even though I don't know what. - she was crying - It is heavy.
- Oh, baby, come here - he brought her closer and have her a warm hug.
- It hurts. It hurts very much. I don't think I can carry it.
- Come on, don't cry - he told her, holding her even closer - I think I can help you.
He stood up, grabbed her hands and took her in the direction of a garden nearby. The cold wind was a bit stronger there, so she put her hands in her pockets. 
- Hey, where are you taking me?
He didn't answer. They went to the middle of the garden, next to a big tree, in the shadows.
- Hummm... I think this is a good spot. Do you think anyone can see us?
- I guess... But only if they really pay attention - she said as she cleaned one stubborn teardrop that insisted in coming down her cheeks - What are you gonna show me?
- Here, hold this - he gave her his beer bottle and reached for his backpack.
- I'm getting curious... - she tried to be more cheerful.
- Just a second... Just a second... Would you please hold this as well? - he said, while handing her a bag of cookies and an empty bottle of coke - I carry too much stuff with me! Hahaha... Where is it? Where is it? Oh, here it is! - he cheered as he took out of his bag some kind of ball - Now give me back all this stuff.
He put everything back to his backpack and took the beer bottle back.
- So, this is the secret. All you have to do is to change things. To transform them. You are the one who give stuff their heaviness. Things are not heavy or light per se - he said, as he threw the ball to the air, like if it were a Ping-Pong ball. A gray Ping-Pong ball - if you learn to control it, you will be able to make things as heavy or as light as you want.
- Are you kidding me, sweetie? You have always been funny! - She said as she turned back and started walking away - Come on! You already cheered me up. I got the point. Now let's leave the dark, come!
- Hey, it is true! Don't you believe? Catch! - And he threw the ball to her.
She did and automatic gesture to catch the Ping-Pong ball. But when it reached her hand she realized it was very heavy. It almost made her loose her balance and drop her beer.
- Wow! What is that? - She asked while dropping the ball on the ground - is this made of lead?
- You got it on the first try! Congrats! Now come back here, sit with me.
She took the ball and walked in his direction, with disbelief in her eyes. What kind of funny joke was that? As she sat, he started explaining.
- This is how you do... - he placed the ball between them, on the ground - You know, as I told you, we often don't realize, but things are not heavy or light per se - he took her hands and placed the ball on one of them - we are the ones who see things in a manner and decide how they exist for us - then he took one of his hands and placed over her hand, creating a cocoon around the ball, half her hand and half his hand - I'm sure you have asked yourself if you blue is he same blue as mine. If maybe what I see as blue is your red. Everyone thinks this at some point. Everyone asks those questions because inside us there is this sleeping power, this potential to create our surrounding - he took her other hand and put it on the other side of the ball - When we are children and see things for the first time, we decide how they will be for us. If we decided it then, we can decide it now. We decide it, girl - He pressed her hands around the ball and took away his, making her hold it alone - We.
As she held the lead ball she could still feel its weight.
- Come on... It is still heavy - she said in disbelief.
- Just try it. Go back... Try deciding again how much heavy a lead ball really is. Just try it. Trust me.
She closed her eyes and tried to do it. She remembered of her childhood. Of her mom dropping her by the Kita. Of the weekend when they camped on the beach. She remembered of holding her father's hand when walking on a sunny Sunday to eat some ice cream. And... And this last thought did the trick. She could remember vividly how much she enjoyed feeling the sun on her skin for the first time and specially, how much she liked how her skin had a different smell after being for a while on the sun. She remembered of understanding that feeling and that pleasure. And while she thought of this memory, there, on that cold march Berliner night, she started feel the sun on her skin. She could feel her father's hand holding hers. She could feel the same safety only children can, when they are open to everything and are willing to try whatever they see in front of them. She felt it all. Even if only for a few seconds, she felt it all. And then she also felt that the ball on her hands was as light as a Ping-Pong ball.
She opened her eyes and saw her friend looking at her with a smile.
- So? Can you do it? - He asked her hopefully.
- Yes! - She said with a triumphantly smile - I can! - And she threw the lead ball to the air, as if it was a simple Ping-Pong ball - This is so amazing! Can we do it with anything? - She asked, while playing with her new toy.
- Well, almost anything, girl. Almost anything...  - he explained - I think that it is possible to transform anything heavy into a lighter version, you know? But do we need this? I mean, do we want to have only light things? I don't think so... There are things that must be heavy, otherwise they will fly away... You know what I mean?
- That makes sense... - she answered
- But the important thing is that now you know that you have this power in you... And you decide when to use this.
She hugged him on a weird way, since they were both still sitting on the ground. They almost fell down. He was caught off guard, so he dropped his beer bottle.
- Hey come on! Let's not waste beer - he said as he reached for it on the ground.
- Oh, thank you! Thank you so much for this talk - she said as she handed him back the ball back.
- No worries, girl. No worries. And keep the ball. It is a Geschenk.


For Anne Marie. My good friend. 

Portuguese version

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O que não disse





Depois de um tempo aqui no Brasil, a vida finalmente encontrou seu ritmo. Acordo num determinado horário. Como, almoço, faço o lanche da tarde... Passeio com o cachorro, vejo amigos e deito em frente à televisão. Durmo. As coisas se repetem num ritmo que me embala e me faz sentir-me em casa.
Além de a vida ter encontrado seu ritmo, eu também encontrei muitas coisas por aqui. Encontrei inúmeros cadernos de 10 anos atrás que eu guardava. Estavam lá, parados, do lado de um bolo de notas fiscais de 7 anos atrás. Ambos esperando, sem sentido. Encontrei cartinhas de possíveis namoradinhas da quinta, sexta, sétima série. Todas casadas hoje. Encontrei documentos de estágio, documentos de vestibular, documentos de nem-sei-o-que. Acho que revirei tanta coisa, que reencontrei até minhas alergias, há muito esquecidas. Mesmo entre um espirro e outro, eu gosto de rever coisas antigas. Algumas se revelam inúteis e vão pro lixo. Outras a gente decide esperar mais cinco anos antes de jogar fora. E outras ficam. Guardadas.
Mas eu não fiquei só encontrando boletos bancários de curso de francês de 2007 não. Nesses dias tenho reencontrado muita gente. Muitos amigos. E quer saber? A vantagem é que as amizades não ficam esquecidas em uma gaveta, paralisadas, acumulando poeira. Cada um dos amigos que revi continuou sua vida, com novas conquistas e desafios, novos cabelos e novas barbas. Fiquei feliz de me reencontrar com eles. De ver que continuavam aqui, despoeirados.

- Oi, Gu! Que bom te ver!
- Thereza! Que gostoso te ver também! Como você está?
- Ai, Gu, tá ótimo, casa nova, casamento...

- Micheli!!! Você está igualzinha!
- Que saudades, Gu! Toma pra você, uma lembrancinha!
- Não precisava, Mi! Obrigado!

- Ai, Paulinha, nossa cara vir pra livraria cultura, né?
- Gu, os vendedores daqui me conhecem pelo nome! Eu e o Rodrigo estamos aqui todo fim-de-semana.

- Gustavo Carneiro! Como assim você não me ligou ainda? Se esqueceu de mim?
- Desculpa, Leo! Nunca me esqueceria de você! Me conte de sua vida! To com saudades...

- Maria. Minha amada Maria. Que saudades que estava de você!
- Guts! Me dá um abraço! - Não dona Mimi! Não foge não.

E a conversa vai pra assuntos leves e novos. A casa nova, o casamento, a festa, o bolo.
A família. O pai que a acompanhou ao casamento. O concurso que vai chamar. A viagem a Recife. A viagem ao Japão. A gravidez. As lembranças de Berlim. Minha vida em Berlim. Berlim. Brasília. Bolha imobiliária. Berlim. Seriedade dos alemães. Brasil. Imagina na Copa?  Facebook. Valesca Popozuda. Convite pra jantar. Risoto. Acarajé. Brownies. 

Conversas. Tão previsíveis e imprevisíveis como elas sempre são. Mas teve algumas coisas que não consegui falar pra Thereza, Leo, Maria... É que existem alguns acontecimentos pequenos que transformam o nosso dia a dia. Que nos fazem sentir como parte de um lugar. Que se apresentam a nós e nos conquistam, mas continuam seu caminho, sem parar pra nos dar mais encantamento. Compartilho, então, o que não disse.


Passei natal em uma pequena vila de 600 habitantes, perto de Bonn. Enquanto passeava, pude ver cabeças nas janelas me analisando. Na semana do Natal a única loja da cidade estava fechada. Não pude comprar nada de comida pra colaborar na casa da minha anfitriã, o que me deixou um pouco constrangido. Mas fui acolhido numa autêntica ceia de Natal alemã. Dei um Mickey de presente pros sobrinhos dela, que não deram a mínima. Só queriam ler os livros que o avô tinha dado.


Em janeiro voltei de Barcelona para uma Berlim bem escura e fria. Um dia, ao ir pra escola, peguei meu primeiro engarrafamento em terras alemãs. Estava em um ônibus lotado. Desses que não deixariam nenhum ônibus brasileiro com vergonha em termos de passageiros por metro quadrado. Enquanto esperava 10, 20, 30 minutos, comecei a me sentir sufocado. Estava sufocado não pelo pouco espaço que eu tinha pra me mover ou pelo ar viciado partilhado por tanta gente. O que me sufocou foi o silêncio denso que fazia naquele ônibus. Eu senti vontade de gritar, pois não é natural que 60 pessoas permaneçam 30 minutos em silêncio daquele jeito.



No verão trabalhei na Allversity, uma companhia de internet iniciante aqui de Berlim. A inauguração do nosso site foi feito a poucos quarteirões da minha casa. Me vesti e fui pra lá a pé. Ah, sim, é importante dizer que a festa aconteceu na semana mais quente que vivi em Berlim. Já tinha uns 4 ou 5 dias que a cidade estava abafada. Ninguém estava aguentando fazer nada. Pois bem. Depois de umas 5 horas de festa, começou a chover. Chuva forte, com gotas grossas. O instinto natural de todos que estavam na rua foi entrar na casa, para se proteger da chuva. Mas em poucos minutos os convidados da festa conseguiram ver que dentre as gotas pesadas havia um grupo de pessoas leves, dançando e cantando, como se fossem criança. Eu era um deles.


Por volta de Abril, o sol saiu e todos começaram a aproveitá-lo. Um dia aproveitei e fui estudar no parque que tem perto de casa. Cheguei e estendi minha toalha. Peguei meu texto e comecei a ler. Ao fundo escutava uma criança rindo, brincando com o pai. Perto de mim via um adolescente jogando frisbee pro cachorro. Foi gostoso estar ao ar livre. Mas o melhor foi que, deitadinho no chão, consegui olhar rente à grama e ver que haviam várias flores no campo, dessas que parecem erva daninha, sabe? Eram rasteirinhas e com pétalas brancas e curtas. Pois bem, junto dessas flores tinha, no parque todo, inúmeras abelhas trabalhando em minha volta. Cada uma prestando atenção no seu pólen. Percebi que tinha um mundo inteirinho acontecendo à minha volta. E eu voltei a ler meus textos.

sábado, 2 de novembro de 2013

Breakfast




It is a cold day. And as usually, it was hard for me to get up this morning. But now I am here, sitting alone in my kitchen. Enjoying the morning solitude. I have just prepared myself some fresh coffee and the smell fills the kitchen. It helps me to feel awake for one more day. You know, this is one of my favorite parts of coffee, the aroma. It is just that, as I hold my coffee mug with both my hands, and feel the heat, the smell fulfills me. It is the smell of the coffee break from my first job. The smell of my home kitchen, which is far away, in Brazil. Of "please mom, can't I sleep for just 5 more minutes?"
Before taking my first sip of coffee, I look inside the mug and there it is another of my favorite things of coffee: the color. I know I can almost sound ridiculous, but I will say it anyway. I'm fascinated by the blackness of coffee. It does not resemble at all the artificial color of a coca-cola, with its stressed bubles. No... With coffee it's different. He just lays there, quiet, releasing a discrete mist, like if he were just waiting for me. I stare at my cup of coffee, but he just stares back. He keeps looking back deeply into my eyes, challeging me. I can almost hear "are you gonna face another day?" I try to object, but he ignores me. He ignores and keeps staring at me. And like it usually happens in those imaginary eye battles, one part must lose. So I look away. I close my eyes pretending it will make me enjoy better the fragrance. But then, I realize that, instead of running away from the darkness, now I am inside it. It is not dark only inside my coffee mug, but everything around me becomes dark
I keep my eyes shut for a moment. The scent and the darkness play tricks with my mind. While the aroma takes me back to several familiar memories, with pleasant colors I already know, the darkness leads me to a world of colors I have never imagined before. Colors that are waiting for me in this unknown future. And then I catch myself feeling amazed by their beauty and hardness. They are the hidden colors inside my dark coffee. This journey lasts only for a moment, because I quickly open my eyes and find myself again alone in my kitchen. Outside my gray window a raven sings sadly in the Berliner sky.
And Berlin's melancholic sky reminds me of my third favorite part of coffee. I like how bitter it tastes. I have stopped adding suggar to my coffee for a while now. I must confess that I don't miss it anymore. Maybe I'm getting old, but with time I've learned that sweetness can make you sick. One cannot rely on a blue sky everyday. There isn't such a thing as a life of only happiness. And this is fine. What we understand as undesirable can also hold a hidden beauty. Bitter and sour also play an important part in life. And it would be unbearable to have an entire life where you only know the obvious tastes. 
Only then I take my first sip of coffee, receiving this black bitter liquid, that carries in it memories, fears and amazing possibilities.
Good morning.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Café da manhã





Hoje o dia está frio. Foi uma dificuldade pra sair da cama, mas consegui. Agora estou sozinho na cozinha, aproveitando a solidão matinal. Acabo de passar um café fresquinho. Seu cheiro forte inunda a cozinha e me ajuda a acordar pra mais um dia. Sabe, é essa minha parte preferida do café: seu cheiro. É que, segurando a caneca de café preto e sentindo seu calor em minhas mãos, seu cheiro me inunda. Cheiro da cozinha lá de casa, no Brasil distante. Cheiro da pausa pro cafezinho do trabalho. Cheiro de “só mais 5 minutinhos, mãe, que eu já eu levanto pra ir pra escola”.
Antes do primeiro gole, olho dentro da caneca e me deparo com minha segunda parte preferida do café: sua cor. Correndo o risco de me tornar ridículo, vou compartilhar com vocês um segredo: o negro do café me fascina. Longe de ser o negro artificial de uma Coca-Cola, com suas bolhas agitadiças, o café não. O café fica quieto, deixando uma pequena névoa se desprender de sua superfície, me aguardando. Miro para o misterioso círculo negro dentro de minha caneca, mas ele não se intimida. Me olha de volta no fundo dos olhos, como que me desafiando: você vai encarar o desconhecido? Você vai enfrentar mais um dia, com todos seus desafios? Tento protestar, mar ele não fala mais nada. Apenas permanece me encarando. Como geralmente acontece nesses pequenos duelos de olhares, sempre ha um vencedor e um perdedor. E eu me dou por vencido, desviando meu olhar. Fecho os olhos pra aguçar meu olfato, mas então, ao invés de desaparecer, a negritude se agiganta, saindo dos limites da caneca e tornando-se a imensidão dos olhos fechados. Fora de mim já existe a manhã, mas o café me acorda pra lembrar que a noite voltará.
Enquanto estou de olhos fechados, o cheiro e a negritude brincam com meus sentidos, me levando pra visitar lugares inesperados. O cheiro me puxa pras lembranças diversas. Cores conhecidas, familiares e agradáveis. Mas a negritude me mostra cores nunca antes vistas. De um futuro desconhecido. De um futuro que me deixa maravilhado com sua dureza e beleza. Cores escondidas no desconhecido do negro. Uma jornada que dura apenas um instante, pois abro os olhos e estou de volta em minha cozinha, com sua janela cinza. Do lado de fora um corvo canta triste no céu de Berlim.
E o céu melancólico de Berlim me lembra da minha terceira parte preferida do meu café: seu gosto amargo. Deixei de tomar café adoçado faz um tempo já e confesso que não sinto falta mais. Coisa da idade. Com o tempo aprendi que o doce pode ser muito doce. Que não podemos ter céu azul todos os dias. Que não pode existir uma vida de alegrias apenas. Mas também aprendi que está tudo bem. Que o que percebemos como indesejável também traz sua beleza. Que o azedo e o amargo possuem um espaço muito importante em nossos dias. E que seria insuportável conhecer apenas o doce e salgado de tão óbvios que são.
E assim, tomo meu primeiro gole do dia, recebendo esse liquido negro e amargo, que vem carregado de memórias, medos e misteriosas possibilidade.
Bom dia.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

The Void







Some days nothing seems to work. You know when things just don't flow? This is what happened yesterday with me. I was leaving home a little late for my bus and on my way downstairs I felt something was missing. While walking I reached for my pocket and felt the empty space: I had forgotten the book I am reading on my subway rides. I hesitated for a moment before deciding to quickly go back and pick it up. When I finally arrived at the bus stop I had missed it by just a few seconds! And there you go… I knew I had messed up the feng shui of my day: missing that bus, led me to take the wrong train, which, by its turn, led me to the wrong train station.
So, there I was, standing at the wrong station, already super late for my class, when I decided I might as well skip it for the day.
I left the station and started wandering around, thinking about life, when I noticed I was still carrying the book that had caused this small revolution in my Monday morning’s plans. Isn’t it funny how almost every day small things can have an impact on our lives? If I hadn’t decided to go back and pick up that book, I would then be learning the Konjunktiv II. But instead I was now taking a walk.
On my way I spotted a gap in a row of buildings that looked like a square, or better: a garden. It was kind of funny, because it really looked like someone had taken an entire house out of the middle of those two buildings, as easily as someone cuts a piece of cake. And then, the neighborhood, without having anything better to do with the empty place, had decided to make a garden out of it. It reminded me of my hometown, Brasilia, which also has lots of empty spaces. In fact, there are so many empty spaces in Brasilia that I wondered if it could ever be covered with gardens. If that happened, there would be no prettier city. But anyway, I was not in Brasilia. And as far as I knew, I had found the prettiest garden in Berlin. I decided to sit there and enjoy the flowers, feel the sun, and watch the kids running around.
As I watched those kids, I tried to remember how many “books” I had come back to pick up in my life. And how many times those books had taken me to places I had never imagined going… I must confess I couldn’t remember a single one of them. I guess our limited capacity to keep memories makes us erase several of those unimportant decisions that make small revolutions in our everyday life.
One of the children came running towards my bench and hid behind it. And only then I realized those children weren’t randomly running. They were playing hide and seek. So I carefully pretended I didn’t know what was going on with this small fugitive and kept my Monday morning’s thoughts. I guess it is better not to remember everything. We do not have a vocation to be God and carry the weight of knowing everything. And this is good. I doubt those kids would be able to run so lightly if they had to carry all this weight.
This idea became even clearer to me just a few moments later, when I stood up and walked away from the garden. On my way out I could read a sign that explained how that empty space was actually a house destroyed by bombs during World War II. I tried to digest such information. But it was just Berlin being Berlin, and asking permission not to forget its past.
Yes, this is typical Berlin. She is always telling me that her empty spaces have meanings; that her sidewalks have small golden plaques; that her fountains have lists of names from people who were taken away before their time. Yes, this was only Berlin trying to teach my mind that it is not ok to forget everything; that some things should never be forgotten.
And there you go. As I kept walking through Berlin’s perfect sidewalks my mind travelled to Brasilia once more. If Berlin carries the weight of its own heavy past, Brasilia aims for the opposite. She constantly turns our heads to the sky. And everything is so light there that we keep forgetting our recent past which we just started to build. While in Berlin all those empty spaces are there to remind us of things that have been, but no longer are, in Brasilia empty spaces make us think of the future. Emptiness means potential and possibilities.  And all this lightness of having possibilities can also bring weight with it. The weight of the responsibility we have when we decide how to fill them.
And then I couldn’t help but smile, just like I always do when I suddenly see those improbable correlations.

And all became even more special when I realized that exactly one year ago I left the city with no past to the city with too much past. The only city that could add a little bit of heaviness to my twenty-five years of Brasília.

O poder do vazio







Tem dias em que as coisas parecem estar amarradas... Sabe quando o dia não flui? Comigo isso acontece uma vez por mês, mais ou menos... Ontem mesmo, por exemplo. Saí de casa alguns minutos atrasado pra pegar o ônibus, mas no meio das escadas percebi que tinha esquecido o livro que to lendo no metrô... Parei por alguns instantes e decidi que iria voltar pra buscá-lo. Quando cheguei no ponto, tinha perdido o ônibus por alguns segundos! E aí aconteceu... Eu tinha que decidir entre esperar o próximo ou andar até a estação de trem. Mas comigo, quando isso acontece, eu sei que o feng shui do dia já ficou todo embaralhado. E não deu outra! Decidi esperar pelo próximo ônibus, que chegou atrasado. E aí eu perdi o trem, novamente, por alguns segundos. Como peguei o próximo trem que passou, nem percebi que era outra linha, que não me levava aonde eu queria...  E foi assim que eu fiquei super estressado logo de manhã! Parado na estação errada, já com meia hora de atraso, resolvi que não fazia sentindo mais me apressar pra aula. Então, eu iria só pra segunda metade da aula mesmo. Era melhor investir meu tempo em refazer minhas energias.
Saí da estação e fui caminhando enquanto pensava na vida. Olhei pro livro que eu ainda segurava em minha mão. A causa disso tudo. Engraçado como todos os dias a gente está constantemente mudando nossas vidas. Se eu não tivesse ido buscar o tal livro, estaria agora aprendendo o Konjunktiv II. Mas parece que foi mais forte que eu. E agora eu estava aqui. Passeando...
Avistei um espaço entre os prédios que me pareceu ser uma praça ou jardim. Na verdade era não bem uma praça... Parecia mais que alguém tinha tirado uma fatia entre dois prédios. E naquele terreno baldio, os moradores mesmos se empenharam em construir um pequeno jardim, com árvores e banquinhos. Me sentei pra observar umas crianças que corriam pelo sol.
Enquanto olhava as crianças, tentei me lembrar de quantos “livros” eu já tinha voltado pra buscar. E quantas vezes eles já tinham me levado pra lugares inesperados... Confesso que não consegui me lembrar de um sequer. Acho que nossa capacidade limitada de armazenar memórias nos faz apagar várias dessas decisões desimportantes que fazem pequenas revoluções em nossas vidas. Uma das crianças veio atrás do meu banco e se abaixou, rindo baixinho. Só então percebi que as crianças não estavam correndo aleatoriamente... Elas estavam brincando de pique-esconde. Fingi que não tinha nada a ver com a agitação ao meu redor e continuei meus pensamentos de segunda-feira de manhã. Que bom que não nos lembramos de tudo. Acho que não somos – e nem temos vocação pra ser – Deus e carregar o peso de tudo saber. E isso é bom. Se a gente carregasse todo esse peso, duvido que nossas crianças conseguiriam correr com tanta leveza quanto eu estava vendo em minha volta.
E isso ficou ainda mais claro quando me levantei pra continuar meu passeio e fui ver a placa no canto do parque. Lá no cantinho eles explicam que onde havia a pequena praça, ficava uma casa que foi destruída por uma bomba na segunda guerra. Sorri pra mim mesmo enquanto tentava fazer essa informação fazer sentido. Mas era apenas Berlim sendo Berlim e, pedindo licença pra não esquecer seu passado.
É... Berlim gosta de fazer isso. Sempre me diz que seus vazios tem significado. Que suas calçadas tem umas pequenas lajotinhas douradas. Que suas fontes tem listas de pessoas que se foram. Sim, era apenas Berlim, tentando lutar contra minha mente imperfeita que tudo tenta esquecer.
Mas que coisa! Enquanto continuava meu passo pelas calçadas perfeitas de Berlim, comecei a lembrar de minha cidade. Se Berlim nos traz o peso do passado e nos deixa com os pés bem firmes no chão, Brasília se propõe a justamente girar nossas cabeças em direção ao ceu e, em sua leveza, nos esquecemos do passado que ainda estamos tentando começar a construir. Se, em Berlim o vazio me lembra do que já foi e que precisa ser reconstruído, em Brasília o vazio nos remete ao futuro... É aquilo que ainda não veio. E toda essa leveza da possibilidade do futuro também traz seu peso. Os vazios de Brasília nos lembram da responsabilidade que todos nós temos ao decidirmos como vamos preenche-los.
Sorri de novo, como sempre faço quando vejo essas associações improváveis. E tudo ficou ainda mais especial quando percebi que hoje faz um ano que saí da cidade sem passado para a cidade com passado demais. A única cidade que conseguiu colocar um pouco de peso necessário aos meus vinte e cinco anos de Brasília.





quarta-feira, 24 de abril de 2013

Mais que bermudas, o que a primavera quer da gente é coragem



Ando preocupado esses dias. Tá tudo diferente. O sol tá nascendo mais cedo. Tá se pondo mais tarde. O vento tá soprando mais brando. A água cai em mim em gotas agora. As coisas estão mudando, eu consigo sentir. Mas não gosto de mudanças. Cada dia é diferente do outro. Cadê minha certeza? Cadê minha segurança? Cadê meu chão? 
Respira...
Acordo com o sol no meu rosto. Olho pro relógio: 6h30. Preciso comprar cortinas. Viro pro outro lado e volto a dormir. Quando acordo, estou atrasado. Fazer o que, né? Banho, roupa, comida e já to no trem. 
Na minha frente uma moça com botas, sobretudo, cachecol e luvas. Ao seu lado, um rapaz usando bermudas e óculos de sol. Tudo tão estranho. Isso não tá certo. Semana passada, ninguém ousaria sair de casa sem suas ceroulas e luvas, agora tem gente de bermudas. Que absurdo! Onde esse mundo vai parar? Meu coração começa a bater mais rápido de ansiedade. 
Respira...
A voz diz o nome da minha estação, chegou minha hora. Na rua nada de neve. Cinco dias já que ela não dá as caras. Foi embora sem deixar recado, parece até que fugiu. E agora, escuto pássaros cantando. Em minha frente, passa uma jovem mãe. Ela de vestidinho verde. O bebê, mais empacotado que não sei o quê. Não faz sentido! Simplesmente não faz!
Respira...
Minha mente tenta compreender isso tudo. Ela tenta se casar com o novo. Mas o medo de se decepcionar é grande. Se não gosto de mudanças, tenho especial desprezo por decepções. Essas não são bem-vindas nunca. Simplesmente não dá!
Sinto um peso constante dentro de mim. A cada dois passos tenho de parar e me lembrar a respirar. 
E agora tem essas tulipas vermelhas e amarelas que teimam em crescer. Coitadas. Vão morrer na próxima nevasca, vão ver só... Uma bicicleta passa voando em minha frente. Quase me atropela. O cara da bicicleta, de bermudas, solta um palavrão,  me gritando pra prestar mais atenção! Meu coração quase pula do meu peito de susto! Oxente! Ele que preste mais atenção! Vai pegar uma gripe, mostrando as pernas desse jeito!
Me recomponho do susto, apoiando minhas mãos nas pernas e respirando profundamente. Respira, Marcos. Respira... Por alguns segundos, vejo em minha frente um velho cansado, arfando por ar. Ele tem o rosto amargurado, e fechado. Olho pra ele e ele olha pra mim. Sorrio pra ele e ele sorri de volta. E então compreendo que é meu reflexo na vitrine de uma loja.
É isso, amanhã uso bermudas.