“Pode entrar e se
preparar para a cirurgia. É só vestir a camisola e se deitar. Em cinco
minutos volto pra aplicar a anestesia”.
“Obrigado”.
Ela fechou a porta e
deixou Paulo sozinho. Ele examinou o recinto. A sala era fria e branca. Tirou
sua roupa, vestiu sua camisola e ficou sentado na beirada da
maca. Olhou em volta, tentando achar algum objeto para focar sua atenção. Mas
não obteve êxito.
Pensou no Pedro. Pensou
nele, da mesma forma como tinha feito nos últimos seis meses. Desde que terminaram,
ele não conseguia tirar Pedro de sua cabeça. Na verdade, Pedro estava mais presente no seu dia a dia do que quando estavam juntos. Era sua companhia pro café da manha e pro jantar. Quando Paulo tomava banho, Pedro lhe assistia. Quando Paulo passeava com o cachorro, Pedro o seguia. Quando Paulo tentava trabalhar, Pedro decidia lembrá-lo de todos os aspectos do relacionamento que tinham causado o termino. Até mesmo quando dormia Pedro era tudo que existia em sua mente.
Os amigos diziam que isso ia passar.
Era só ter paciência. Um dia passaria. Mas Paulo sabia que com ele era
diferente. Isso não era apenas uma dor de cotovelo.
Por suspeitar ser algo físico, Paulo
havia ido ao médico semanas atrás. O doutor, após escutar o relato, pediu
vários exames e constatou. Pedro havia se transformado em um tumor. Um tumor no
cérebro de Paulo, para ser mais exato. E o interessante é que esse tumor estava
em uma área de seu cérebro que, segundo o doutor garantiu, era a responsável
pelos pensamentos imediatos.
“Então, pode ser isso que tem me
causado o pensamento fixo no Pedro, Doutor?”
“Olha, não quero fazer uma afirmação
tão forte, mas… sim. Penso que se retirarmos o tumor, você estará livre para
voltar a se preocupar com as coisas ordinárias do dia a dia…”
“Então, quer dizer que ficarei com
raiva do trânsito de novo? E… e acharei graça nas piadas sem graça que meus
amigos me contam na mesa do bar?” perguntou esperançoso.
“Precisamente. Tenho minhas apostas
de que, com a retirada do tumor, você poderá ter as preocupações mais
comezinhas da vida. Sem Pedro”
“Então, Doutor, eu preciso fazer
essa cirurgia” concluiu Paulo melancolicamente.
“Que bom que se decidiu tão
prontamente, rapaz. Mas, antes não quer ouvir dos riscos? Ou
compreender como se deu a formação do tumor?”
“Ah sim, claro.”
“Pois bem, quando você e Pedro
terminaram, você passou por um trauma muito forte. Seu cérebro, então, fugiu da
dor e do sentimento ruim que isso causava. Foi aí que, como um mecanismo
de defesa, seu cérebro realocou todas as células que guardavam essas
memórias específicas em um só local. E as isolou.”
“Nunca escutei nada
parecido.”
“Eu já tinha lido sobre isso, mas
nunca havia realmente tido um caso deste em meu consultório. Na verdade, é mais
comum do que se imagina. Pode acontecer com qualquer um. Por isso que
conseguimos ver pessoas que amaram intensamente, mas que deixam de amar de uma
hora pra outra. O cérebro delas faz esse mesmo procedimento. Mas geralmente
isso não causa o tumor. E sem tumor, ninguém se preocupa em analisar isso…”
“E porque o senhor acha
que isso aconteceu comigo?”
“Não sei dizer ao certo. Mas talvez
você tenha muitas memórias boas – estas ocupam muito mais espaço do que as
ruins. Ou talvez o seu cérebro tenha entendido essas lembranças como muito
relevantes. Isso é o que as pessoas costumam chamar de ‘um grande amor’. O
interessante no seu caso, é que houve uma ‘rebelião’ dessas células. Elas
saíram do casulo e foram se multiplicando. Se multiplicando justamente na área
do seu pensamento imediato. É por isso que ele, o Pedro, está em
todos os seus pensamentos.”
Paulo ficou quieto. Tentava digerir
aquelas informações novas.
“Está tudo bem?” Perguntou o doutor,
um pouco preocupado.
“Sim, claro... Acredito, então, que
essa cirurgia é minha melhor opção”
“Pois é. Tenho que falar sobre a
contraindicação, ou melhor, os efeitos colaterais dessa cirurgia.
Lembra-se como expliquei ao senhor sobre o ajuntamento das células que
guardavam as memórias do Pedro que o seu cérebro fez?”
“Sim. O que tem?”
“Isso significa que todas as suas
lembranças do Pedro estão reunidas no tumor.”
“Não compreendo bem…”
“Isso quer dizer que, ao remover o
tumor, removeremos as memórias do Pedro da sua vida. Em última instância
removeremos ele inteiramente de sua memória.”
“Não me lembrarei dele? Como se
fosse apagado da minha vida?”
“Exatamente. O apagaremos da sua
vida. Mas lembre-se: a literatura médica indica que você poderá seguir com sua
vida logo após a cirurgia.”
Paulo permaneceu quieto, com uma
expressão quase solene.
“Preciso pensar sobre isso, doutor.
Posso ligar em alguns dias com a resposta?”
“Fique à vontade.”
Paulo foi pra casa e tentou pensar no assunto.
No entanto, Pedro povoava todos seus pensamentos. Qualquer filme que assistia
lhe lembrava de Pedro. Qualquer conversa com seus amigos tinha Pedro como
principal assunto. Nada que ele fizesse lhe ajudava em ter uma mente mais calma
para pensar sobre a sua decisão.
Ante a impossibilidade de pensar,
compreendeu que a única opção viável seria fazer a cirurgia. Foi obrigado a
isso, para seguir em frente e continuar com sua vida.
“Posso entrar?” perguntou a
enfermeira do outro lado da porta.
Paulo permaneceu quieto.
Silenciosamente pensando em Pedro.
Ela abriu a porta e perguntou “O
senhor já esta pronto?”
“Sim.”
O médico entrou e começou a lavar
suas mãos. Paulo olhava
pela janela, enquanto a enfermeira limpava seu braço com álcool. O dia estava nublado e o céu estava branco. Bem parecido com o dia
em que eles se conheceram, há três anos. Depois do álcool veio a agulha. Doeu
um pouco.
“Por favor, Senhor Paulo, conte
de dez a um em voz alta.”
“Dez, nove, oito, sete, seis…”
E finalmente descansou em paz.